Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

Brasil Musical e Poético
 
Tinha razão o escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, ao dizer de nosso continente que aqui a terra em si era de “muito bons ares, frescos e temperados — em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem”.
Esse encanto não espantou apenas Caminha.
Muitos são os registros das descrições da natureza e dos povos nativos, autos para a catequese dos indígenas e até sob a forma de epopeias com assunto local. A curiosidade geográfica e humana, o desejo de conquista e o deslumbramento diante da paisagem exótica e exuberante do país são a tônica dos textos produzidos ao longo do século XVI.
Nosso antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), em seu texto “O Povo Brasileiro...”, ressalta, em certo ponto deste livro:
 
Os navegantes, barbudos, cabeludos, fedorentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a persistência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar.
 
O espanto e o encanto são o dilema que nunca mais nos abandonou. Estamos num paraíso terreal, onde tudo há do que precisamos e nos confrontamos, permanentemente, em face de ambições antissociais, numa contradição desmedida, a impedir que o canto e o riso sejam plenos, como se desconhecendo a mensagem que o belo promove: a vida pode ser alegre.
Ainda que uma alegria extraída desse movimento entre a percepção do belo e da ambição, que pode ser bem custoso, como se ler na poesia “A Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987):
 
Uma flor nasceu na rua!
[...]
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
 
Esse cenário de matas virgens e de rios caudalosos, já descrito por Caminha, é nosso “Jardim do Éden”, o paraíso inicial com “[...] toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer [...]”, como consta da Bíblia, em Gênesis.
Nosso palco social foi instalado nesse paraíso. Aqui se abrigou todo o tipo de interesse. Prevaleceu o interesse econômico e tudo foi igualado à mercadoria, tudo passou a ser tratado como matéria de consumo e a consciência político-social foi se perturbando e se amesquinhou.
A flor de Drummond, nascida na rua, é a indicação de que há sempre uma esperança de nosso “retorno” ao paraíso visto por Caminha. É o nascimento da flor um símbolo do desabrochar de um mundo novo, equivalente ao Éden inicial, onde a vida e o riso se equivalem.
A poesia, a música e outras artes, inspiradas em nosso cenário paradisíaco inicial, assumiram como dever a proteção do encanto. Na arte, a alma se distancia para contemplar o que é a substância da vida, a alegria, ainda que reconheça as dores produzidas na convivência. É na harmonia do canto, na sutileza das cores do quadro, no doce gesto da dançarina, é nesse mapa de sublimidade que a humanidade do homem se mostra com vigor, fazendo ressurgir a crença da construção de um novo paraíso, na lembrança de um tempo inicial, longínquo, quando, entre nós, não havia pecado, como na poesia de Chico Buarque (1944) e Ruy Guerra (1931): “Não existe pecado do lado de baixo do equador”.
O artista constrói a alma do espaço, traduz com intensidade os sentimentos que vão se formando ao longo de datas, como diz Moraes em “Ideologias Geográficas”:
 
Não há humanização do planeta sem uma apropriação intelectual dos lugares, sem uma elaboração mental dos dados da paisagem, enfim, sem uma valorização subjetiva do espaço.
 
Em Gonçalves Dias (1823-1864), em sua “Canção do Exílio”, aquela valorização subjetiva do espaço, de que fala o professor Antonio Carlos Robert de Moraes, ganha todo um esplendor:
 
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
 
A “Canção do Exílio” inspira tantos outros poetas contemporâneos de Gonçalves Dias e, bem mais tarde, levam Tom Jobim (1927-1994) e Vinícius de Moraes (1913-1980) a criar “Sabiá”:
 
Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir
Cantar um Sabiá...
 
É a poesia, no seu trabalho de encantamento da vida, afeiçoando-se com a música. As duas (poesia e música) são artes e têm força transformadora da emoção e são manifestações sensíveis das ideias, infundindo prazer e conhecimento. Foi nesse sentido que a escritora e poetisa Cecília Meireles (1901-1964) afirmou:
 
Quando um poeta canta é que nele se operou todo um processo de síntese: sua sensibilidade, sua personalidade recolheu os elementos esparsos do momento, da raça, da terra, dos contatos sociais e espirituais; todo o complexo da vida, na receptividade ativa e criadora de um homem, pode produzir máquinas ou leis, sistemas ou canções.
 
O Brasil musical e poético se formou desse complexo descrito por Cecília Meireles, resultado das influências sociais marcadas pela presença de diferentes povos europeus, que se misturaram (sincretismo) com os primeiros habitantes das terras brasílicas e com os povos trazidos da África para o trabalho escravo.
O canto no Brasil é a poética que se fundiu com a musicalidade, tendo como pano de fundo a beleza de nossa origem.
Uma exaltação exemplar desse encanto brasileiro é o texto de Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”: “Brasil! / Meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro / Vou cantar-te nos meus versos”. “O Brasil, samba que dá / Bamboleio, que faz gingar / Ó Brasil, do meu amor / Terra de Nosso Senhor”...
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/08/2018
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