Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

A Pós-Modernidade
 
 
Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.
Zygmunt Bauman
 
Bauman é um sociólogo polonês nascido em 1925. Ele é autor de mais de 40 livros, entre os quais Modernidade Líquida, publicado em 2000.
Este texto nasceu depois de uma leve leitura de Bauman.
As reflexões de Bauman lançam luzes a um tempo novo vivido neste momento presente, tempo que dissolveu a solidez das certezas da Modernidade, período histórico que começou em torno do século XIV, alcançou sua maturidade no século XIX e no século XX começou a viver um declínio. Tudo aquilo que parecia ser sólido entrou num processo de liquefação. Nada mais é garantido: os relacionamentos são frágeis — o interesse sobrepõe-se à fraternidade; a família, o trabalho a educação, que eram fundamentos de vida, agora estão se desfazendo enquanto base social; as interpretações teológicas perderam a força ética com a mercantilização da fé.

Ainda mais, a promessa da Modernidade de tornar o homem robusto, eficaz, capaz de alcançar suas utopias, não se realizou. O Estado racional, que seria capaz de resolver nossos problemas sociais, fracassou, pois não conseguiu atingir seus objetivos de produtor de justiça no mundo, de garantidor de vida das pessoas, nem mesmo teve capacidade de controlar e civilizar o capitalismo. Aí está a transformação da sociedade numa descontrolada massa de consumo e de desperdício aqui e de carência calamitosa ali.
O cântico de esperança, sonhado por cientistas e pensadores da Modernidade, perdeu a consonância. O próprio filósofo Immanuel Kant (1724-1804) enxergou esse período da Modernidade como o momento histórico em que o ser humano superaria a superstição e a ignorância, sairia da “menoridade” e seria capaz de usar ou usufruir do próprio entendimento para alcançar a “maioridade” racional. Esse otimismo intelectual era uma das principais características do Iluminismo (movimento intelectual europeu entre os anos 1650 e 1700). O Iluminismo cultivou o ideal do progresso, a busca do humanismo, a prática da tolerância, a defesa do livre pensamento e acentuou a crítica às influências regressivas da tradição e das religiões.
Contrariamente a esse otimismo iluminista, o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), na estrofe inicial de seu poema “Tabacaria”, fala de um desencanto sobre o mundo: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Esse desencanto, encontrado na poética de Pessoa, está solidamente configurado no pensamento do filósofo alemão Nietzsche (1844-1900), em sua obra Assim Falou Zaratustra, de 1883. Nietzsche critica o pensamento tradicional e estabelece novo padrão de valores diferente da cultura judaico-cristã, que pregava a humildade e a submissão: “Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas”. Essa afirmação é arrematada com o esclarecimento de que tudo está em nível da vida experimentada no social, no mundo histórico dos homens vivendo em torno de seus interesses: “A vida mesma nos coage a instituir valores; a vida mesma se valoriza através de nós quando instituímos valores” (Nietzsche).
Nessa tese, estamos todos num mundo por nossa própria conta. Cabe ao próprio homem encontrar seu caminho, definir-se e definir o mundo. Reafirmando a ideia acima de Nietzsche, é a vida mesma que nos coagirá a encontrar o caminho. Os dados todos para isso estão no mundo, são contemporâneos da vida de cada pessoa, estão no presente. É preciso desenvolver esforços para conhecer e compreender este mundo, habitat natural de cada um e de todos, espaço que reúne as condições para que possamos residir, viver e aperfeiçoar este nosso presente. Ter consciência disso é uma demonstração de nossa capacidade de inteligência.
Nessa mesma direção de pensamento, o sociólogo Bauman chama atenção para um ponto central: “[...] tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência”. Aquele instante anterior, a “modernidade sólida”, mundo entre 1650 e 1700, da promessa do encontro de um momento adequado para o homem, é uma ilusão, tornou-se líquido. O tempo presente se desfez das antigas ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante, anulamos a utopia:
 
Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades “auto evidentes”. (Bauman)
 
“E agora, José?”, como perguntaria Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Agora é lembrar que temos a nós mesmos e a nossa capacidade de agir e discernir. A ampla duração de nossa experiência histórica criou no homem uma força especial, uma potência capaz de solução. Ter consciência disso é assumir a condição de agente da própria vida e buscar encontrar formas adequadas de viver, levando em conta a necessidade da ação virtuosa aberta à reciprocidade, como no princípio formulado pelo grande mestre Aristóteles (384-322 a.C.):
 
Uma semente é uma árvore em potência, mas não em ato. Quando germina, a semente torna-se árvore em ato. O movimento é a passagem do ato à potência e da potência ao ato.
 
Aristóteles é atualizado, 20 séculos depois, pelo, também, pensador Karl Marx (1818-1883) ao afirmar:
 
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.
 
Aí está o tempo novo, os homens fazendo sua própria história, mas não da forma que desejam, mas da forma que é possível.
O possível do tempo presente, como ensina Bauman, é fazer coisas dentro de uma aceleração permanente, nesse impulso de transgredir, de substituir em que “nada é para durar”, ou ainda, onde “os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem”.
A pergunta que está presente no pensamento pós-moderno é que precisamos correr muito. Para onde mesmo queremos ir?
O professor e filósofo da Universidade de São Paulo, Luiz Felipe Pondé, responde a essa questão: “Não estamos correndo para lugar nenhum, corremos, simplesmente, porque temos de correr”.
Nesse sentido, então, estamos atônitos. Corremos por correr. Esse sem sentido nesse gesto de agir, próprio do mundo pós-moderno, está bem assinalado na historinha infantil Alice no País da Maravilha, de Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dodgson -1832-1914) e no romance O Processo, do judeu tcheco Franz Kafka (1883-1924).
Em Alice no País da Maravilha há um diálogo do Gato com Alice que alcança bem o espírito pós-moderno do sem sentido, sem finalidade, sem norte:

— Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
— Isso depende muito de para onde queres ir — respondeu o gato.
— Preocupa-me pouco aonde ir — disse Alice.
— Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas — replicou o gato.
 
Em Kafka, o romance O Processo conta a história de um bancário (Josef K) que é processado sem saber o motivo. Todo o romance é uma peregrinação de Josef K até sua morte. Kafka reconfigura cada um de nós no personagem Josef K. Estamos numa prisão neste mundo, apesar de não parecer. Todos nós somos submetidos a um processo de alienação e nunca temos respostas adequadas às questões da vida e nem encontramos explicações para nada.
Nesse caso, as perguntas que aparecem são: qual é a razão de nossa existência? A vida humana tem uma finalidade?
Algumas das respostas pós-moderna começaram por uma explicação: o sentido da vida humana não está inteiramente dado na partida, logo que surgimos. A escolha do que somos foi resultado de nossa própria construção social, ou seja, o sentido de nossa vida não nos foi entregue por qualquer divindade.
Uma resposta a questionamento dessa natureza poderia ser: a razão de nossa existência e a nossa finalidade começam e terminam no próprio homem. Importa dizer, somos inteiramente responsáveis por nós mesmos. Podemos construir uma vida boa, de bem-estar, a partir de frutos de conhecimentos adquiridos, de ações virtuosas e de acolhimento de belezas no mundo da arte. Podemos viver isso ou podemos viver uma vida fútil, egoísta, cega e insensível ao que se passa a nossa volta.
Independentemente de nossas escolhas, estamos todos bem no centro de uma grande transformação da cultura. É nossa obrigação conhecer e compreender esse novo contexto de mudanças na direção de uma cultura radicalmente diferente. Vivemos um novo cenário nesse palco do saber iniciado pela razão grega (IV século a.C.).
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 21/08/2018
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